PROBLEMATIZAÇÃO
Convém retomar alguns pontos apresentados no início deste trabalho a fim de delimitar a problematização em torno da memória, identidade e imaginação no espaço público. Nossas reflexões abrangem a influência do mass media no espaço público e as consequências ou impactos dos serviços de saúde pública entre a população de Mamborê-Pr. Portanto, em nosso entendimento, apesar de formularmos questões abertas aos sujeitos da pesquisa são possíveis as seguintes indagações: a) que situações veiculadas nos meios de comunicação motivaram os munícipes do referido município a imaginar que Josef Kanat seria Josef Mengele? b) Como a imaginação e a memória relacionaram as práticas médicas nazistas ao sistema de saúde no município de Mamborê? c) Os traumas relatados pelos descendentes de vítimas imperícias médicas ocorridas na década de 1950 envolveu problemas de identidade e preconceitos entre as vítimas? d) Como os moradores de Mamborê apreendem atualmente a possível passagem de Josef Mengele pela região e os problemas de saúde pública neste município? e) Com a difusão dos resultados da pesquisa de opinião pública e dos relatos pessoais os mamboreenses compreenderão melhor seu passado, a influência da imprensa e do acompanhamento de problemas relacionados às políticas públicas de saúde?
REVISÃO DE LITERATURA: TEORIA E METODOLOGIA.
Muitos relatos de “terceira mão” difundem a ideia de que o médico Josef Kanat deixou marcas profundas nas vidas de alguns mamboreenses. São cirurgias sem anestesias e desconsideração aos traumas de vários pacientes daquele período. São três casos emblemáticos. O parto de Íris Fantin (1956), no qual foi utilizado o uso de fórceps para realizá-lo, o que lhe acarretou problemas uterinos e também o corte da orelha de sua filha Zilda Fantin durante o procedimento cirúrgico. A cirurgia de apêndice de Antônio Lino, que provocou um buraco em seu abdômen, na qual não houve o uso de anestesia e o paciente havia sido amarrado. A morte de Sieglind Erica Pierburg, de 19 anos, que faleceu de complicações hemorrágicas decorrentes de aborto. Após este óbito, narra-se que Josef Kanat não trabalhou mais em Mamborê.
Entre os anos de 1956 a 1958 Josef Kanat atendia pacientes em Mamborê. Depois de sua partida ainda permaneceram rumores sobre seu paradeiro. Na década de 1980, as atenções dos moradores desta cidade se voltaram para notícias da presença do médico nazista Josef Mengele no interior do estado do Paraná. Com a intensa publicidade e repercussão com que o assunto foi tratado nas mídias, o imaginário da população começou a ser reconstruído e a memória reavivada e reelaborada. Deste modo, é plausível investigar como a comunidade se uniu com o objetivo de legitimar as características de sujeitos distintos, atribuindo ou associando a identidade de Josef Kanat à de Josef Mengele.
A memória e a imaginação são traços do comportamento humano que estão em constante transformação. Elas abrangem as esferas individuais e coletivas, as quais se influenciam reciprocamente. Neste desencadeamento pessoas e comunidade a reelaboraram e reassimilaram imagens memórias e informações, criando novas representações sobre estes fatos.
[1] Buscar sentidos significa ativar certas funções cerebrais e, por conseguinte, ativar processos de rememoração e lembranças. Ora, isto caracteriza o campo da imaginação e do imaginário, os quais desejaram investigar. Mesmo porque é vital conhecermos os sentidos ou significados atribuídos a Josef Kanat/Josef Mengele presentes na sociedade investigada.
Sobre o tema imaginário, privilegiamos a perspectiva do antropólogo Gilbert Durand (1994). Para ele o imaginário se constrói quando o indivíduo busca mentalmente por significados que podem trazer conforto, tanto individual quanto coletivo. O que resulta em percepções, imagens, mitos e também na reprodução de símbolos.
[2] Além disso, a temática vincula-se à psique dos sujeitos, a qual relaciona subjetividade e individualidade, bem como vínculos em contextos de ações sociais e culturais. É provável que este imaginário também esteja carregado de lembranças traumáticas, de retaliações às vítimas e, ao mesmo tempo, seja mobilizador de investigações científicas e de possíveis interesses políticos.
Como se sabe, o inconsciente dos sujeitos responde às formas simbólicas, míticas e discursivas. Desta forma, o imaginário dos moradores de Mamborê se tornou uma construção imaginativa consolidada entre grupos sociais, cujos indícios permitirão compreender seu atual “estado e espírito”.
[3] O imaginário nos interessa, pois podemos analisar não apenas suas variações temporais, mas também as formas e injunções nas respectivas manifestações públicas de suas expressões. Isto em razão de que o imaginário e as representações são compartilhados através de narrativas históricas, as quais “se traduz nas variações interpretativas do conhecimento temporal”.
[4] Portanto, cabe-nos, no âmbito da história pública, analisar interações e intenções subjetivas/objetivas entre os sujeitos em seu cotidiano pleno de significados.
[5] Em relação às identidades e os processos imaginativos, Hall (2001) acena para processos inconscientes dos indivíduos ao longo do tempo, os quais estão em permanente construção e formulação.
[6] Igualmente a manipulação consciente/inconsciente das identidades pelos grupos sociais e pelos meios de comunicação serão aspectos importantes para compreensão com a presente pesquisa.
As identidades de Josef Kanat e de Josef Mengele são frequentemente associadas ao nazismo, experiências médicas e polêmicas. Para termos uma dimensão deste assunto, basta uma simples pesquisa na internet. Circulam notícias, artigos e filmes sobre nazistas na Argentina e no Sul do Brasil, sendo que algumas delas suspeitam até mesmo da confirmação da identidade do corpo identificado como o de Josef Mengele em São Paulo, na década de 1980.
[7] Diante deste conjunto de informações disponíveis atualmente é importante verificar junto aos munícipes de Mamborê nuances do imaginário e da imaginação acerca desta personagem histórica emblemática que gerou polêmica, especulação e publicidade para a cidade. Em contrapartida, investigar os procedimentos médicos e as condições de saúde pública no Brasil e estes se refletiram no município de Mamborê a partir da década de 1950 é importante para compreendermos as condições e direitos que a população brasileira tinha nesse período. A política pública criada no Brasil (1953) através do Ministério da Saúde desnuda problemas acerca da assistência médica plena aos brasileiros e a avaliação e acompanhamento das condutas médicas neste período. Com isso, é preciso verificar como essa política pública refletiu entre a população local e o acompanhamento das práticas médicas em procedimentos cirúrgicos.
O conceito de História Pública no Brasil está sendo refletida em diversos ambientes entre professores e historiadores nos últimos anos.
[8] Em geral o termo diz respeito à ação compartilhada do conhecimento acerca do passado entre historiadores e sociedade. Isto requer ações conjuntas em diferentes ambientes, públicos e institucionais, com participação efetiva de todos. Conforme Santhiago (2016) uma História Pública que seja construída não
sobre e nem
para, mas
com o público. Não é apenas criar um público e alcançar as audiências, mas é uma postura diante do outro que não o caracteriza somente com um objeto de pesquisa, mas também como sujeito da investigação e da reflexão de suas próprias experiências em relação ao passado. (SANTHIAGO, 2018).
A História sendo feita
com o público se torna uma história colaborativa, que ao invés do público consumir os resultados da pesquisa, o mesmo faz parte do processo ativamente em um constante diálogo entre pesquisador e sujeitos. Com isso, esse novo caminho de conhecimento e prática em História se torna um processo que colabora para a reflexão da comunidade sobre sua própria história a relação entre passado e presente, enfim, de como tornar o passado útil para o presente.
[9] E neste processo a História Pública convida o público para uma autoridade compartilhada, que implica em pensar em modos de produção de conhecimento histórico no diálogo como alternativa e colaboração. (FRISCH, 2016).
Portanto, em termos teóricos e metodológicos, o cruzamento de dados da aplicação de pesquisa de opinião pública, com entrevistas
[10] abertas com descendentes e vítimas de erros médicos, é possível partilhar conhecimento histórico e desenvolver um plano de ação através das mídias digitais, de forma colaborativa com o público do município de Mamborê e arredores.
O uso da tecnologia no campo da História é algo que está ganhando espaço no meio acadêmico e para os historiadores públicos. Os diálogos possíveis em uma nova esfera pública de compartilhamento do campo da História são possíveis através das discussões de historiadores como Anita Lucchesi (2013) e Sergio Noiret (2015). Estes autores refletem o campo da História e Historiografia Digital, buscando discutir sobre as ferramentas digitais, usos da tecnologia, avanços das redes de comunicações na internet e como o historiador pode se utilizar dessa área para as práticas de divulgação da história, além de buscar a interação com o público neste processo.
[11] Ao utilizar este campo da História Pública Digital, concordamos com a premissa de Noiret de que existem potencialidades inexploradas no meio digital, que vão muito além de simplesmente comunicar, acessar e processar dados: novos sentidos são criados em cada relação tecnologicamente mediada – sentidos retóricos, políticos, históricos.
[12] É desta forma que o campo da História Pública Digital irá nos oferecer a possibilidade de ampliar o compartilhamento da pesquisa para as audiências. Com o uso da web é possível reunir diversos tipos de usos de mídia no mesmo espaço, como por exemplo, utilizar arquivos de áudios, sons, imagens, vídeos, podcast e ainda promover a dinâmica de interação entre o público de forma atual e prática. Além disso, compreendemos que não basta apenas utilizar as ferramentas digitais, acervos, sites ou blogs sem utilizar também as audiências nesse processo construtivo.
Com o desenvolvimento do estágio obrigatório do Programa de Pós-Graduação em História Pública, que ocorreu no Museu do Holocausto em Curitiba foi essencial para compreender a forma de mediação das memórias das vítimas do holocausto.
[13] Conhecer a transmissibilidade da história com a sensibilidade em abordar a temática para um grande público foi uma contribuição importante para repensar as formas de mediação das memórias dos munícipes de Mamborê. Isto em razão de que abordaremos memórias traumáticas que merecem todo cuidado e respeito por parte dos pesquisadores e comunidade envolvidos. Por meio de uma reflexão em educação humanizada com o público em que os mediadores do Museu do Holocausto realizam naquele espaço, tornou-se um instrumento operacional imprescindível para o desenvolvimento da pesquisa em História Pública, bem como uma ferramenta vital para pensar na interação com interagir com as audiências na cidade de Mamborê. Em termos metodológicos e, a partir desta valiosa experiência, articularemos entrevistas, pesquisa de opinião pública, roda de conversas, tendo como produto final em História Pública a produção de um
website.
A pesquisa e o registro das memórias de sujeitos estigmatizados ou mesmo os traumas de seus familiares serão registrados, analisados, armazenados e difundidos a partir da metodologia em História Oral como prática em História Pública. Entendemos que o trabalho com a História Oral pode promover interpretações sobre as formas pelas quais os participantes da pesquisa constroem e reconstroem suas histórias e, ao mesmo tempo, propiciam contato e interatividade entre pesquisador e audiências.
[14] A contribuição da História Oral para o campo da História Pública é a de compartilhar para as demais audiências as experiências vividas pelos moradores em torno das memórias em relação ao suposto médico nazista. Será utilizada História Oral Temática, pois com ela é possível refletir o movimento que a comunidade em geral viveu em relação ao caso. Este movimento que a História Oral Temática possibilita para a pesquisa é a partir de relação entre realizar o entrecruzamento entre a experiência e a memória dos indivíduos no momento em que estes expõem suas falas. Busca-se com tais perspectivas ir além da coleta de memórias e a de sua transformação em informações compartilháveis. Sem dúvida, a produção de conhecimento sensível poderá implicar em compromissos públicos, por meio de debates amplos e processos de reconhecimento. As abordagens da História Oral no debate público estão atualmente na sociedade assumindo um papel ativo na abertura de espaços narrativos nos quais as histórias sejam criadas, transmitidas e circuladas na configuração não de uma cultura autobiográfica, mas de uma cultura de transmissão e compartilhamento de experiências.
[15] Neste sentido, a História Oral enquanto metodologia possibilitará compreendermos não apenas memórias de experiências comuns, mas também um campo de possibilidades compartilhadas, reais e imaginárias.
[16] As entrevistas de base qualitativa serão utilizadas para abranger uma análise além da descrição do objeto, com a intenção de promover uma reflexão aberta no processo de escuta das falas e compreender as diversas narrativas construídas nesse processo de rememoração. Além disso, o entrevistador e o entrevistado irão obter juntos os processos de rememoração do passado, fazendo com que o trabalho com a história oral seja construído coletivamente entre ambas as partes. Desta forma, o entrevistador não se isenta ou se afasta de seu objeto, pelo contrário, faz parte dessa construção das memórias. A primeira etapa com as entrevistas será realizada a partir de um roteiro com questões preliminares para sua respectiva aplicação. Em seguida, propomos o contato prévio com as pessoas que viveram no período em que o médico Josef Kanat morou no município de Mamborê e, também, o contato com pessoas que conheceram casos gerais e específicos abrangidos pela pesquisa. Para finalizar a análise serão identificadas todas as fontes simultaneamente dialogando com autores que abordam sobre imaginário, identidade, traumas psíquicos, erros médicos e memória.
As entrevistas serão armazenadas no Colegiado de História, nos computadores do departamento de Pós Graduação em História Pública, na Unespar, campus de Campo Mourão. Essa medida será tomada, pois a Instituição ainda não possui um repositório de armazenamento próprio. Para o acesso ao público em geral, será possível disponibilizar o material coletado nas plataformas do Google Drive em pastas públicas compartilhadas. Para a consulta ou pesquisa de opinião pública será utilizada a ferramenta “Formulários Google”, na qual serão colocadas perguntas para a população responder. O questionário ficará disponível para a população no período de dois meses, e para que as pessoas tenham conhecimento será divulgado em sites de notícias e através de radiodifusão.
Em relação à proposição de uma “roda de conversa”
[17] serão convidados sujeitos selecionados nas entrevistas orais e o público que se disponibilizar espontaneamente para esta atividade. Nesta etapa da pesquisa será utilizado para o debate ferramentas tais como: fotografias, jornais, painéis e objetos que possam representar o passado. Para contribuir com a roda de conversa, o psicólogo do município será convidado para a realização de mediações sobre os temas traumas de erros médicos e suas consequências para as vítimas e familiares. Esse material será gravado e ficará também disponibilizado posteriormente em acervos públicos do Município de Mamborê e Campo Mourão, em salas ou espaço públicos para que as pessoas possam ter acesso.
Como forma de divulgar e ampliar as audiências da pesquisa será produzido um website composto por seções temáticas organizadas a partir de temas previamente selecionados, podendo ser reproduzidas entrevistas, no formato podcast, informações, notícias, arquivos, imagens e discussões que abordam os objetos da pesquisa. A criação do website pode condicionar interconexões com o público em relação à interpretação do passado, e também promover a interação com debates atuais sobre a suposta passagem do médico nazista no município e seus desdobramentos na atualidade.