Introdução e Justificativa
De acordo com Gonçalves e Silva (2006) e Mattos (2003), a trajetória negra em relação à escravatura fora marcada pelas mais variadas formas de resistência e pelo posicionamento destes enquanto sujeitos do processo histórico, mesmo que a historiográfica por anos tenha negligenciado tais papéis. Analisando a contribuição histórica do negro para a sociedade evidencia-se que a mesma ainda não é devidamente reconhecida, embora esteja caminhando para tal. A discriminação experimentada pela população negra, práticas racistas e formas segregacionistas praticadas em tempos de escravidão fazem parte do cenário nacional atualmente de maneira camuflada, e tais práticas reafirmam o quanto o lugar do negro no Brasil tem sido posto à prova, de modo a negligenciar sua participação ativa na consolidação de espaços e territórios.
No período escravagista, nenhuma condição de pessoa humana foi garantida aos escravizados, e, com o término deste período, os negros agora “livres” foram vítimas da falta de políticas de inserção e promoção da igualdade de direitos como cidadãos brasileiros. A falta de mecanismos de inclusão da grande população negra contribuiu significativamente para a predominância do preconceito racial, assim como afirma o antropólogo Kabengele Munanga.
Como transformá-los em elementos constituintes da nacionalidade e da identidade brasileira quando a estrutura mental herdada do passado, que os considerava apenas como coisas e força animal de trabalho, ainda não mudou? Toda preocupação de elite apoiada nas teorias racistas da época, diz respeito à influência negativa que poderia resultar da herança inferior do negro no processo de formação da identidade étnica brasileira. (MUNANGA, 1999)
Por conta disso se faz necessária a discussão a respeito de meios para que suas identidades sejam reconhecidas assim como suas significativas contribuições nos mais variados espaços. Neste sentido, de acordo com Domingues (2007), torna-se importante compreender o papel das organizações negras no Brasil, que surgiram por iniciativas destes próprios e buscavam prestar auxílios aos irmãos de cor que não conseguiam ascender socialmente face à ausência de políticas para tal no pós-abolição. Destaca-se face à essas organizações, destaca o autor supramencionado que
[1]
Pinto computou a existência de 123 associações negras em São Paulo, entre 1907 e 1937. Já Muller encontrou registros da criação de 72 em Porto Alegre, de 1889 a 1920, e Loner, 53 em Pelotas/RS, entre 1888 e 1929. Havia associações formadas estritamente por mulheres negras, como a Sociedade Brinco das Princesas (1925), em São Paulo, e a Sociedade de Socorros Mútuos Princesa do Sul (1908), em Pelotas. (DOMINGUES, 2007, p. 103-104)
Dada à abrangência e a diversidade de suas formas e iniciativas, pode-se considerar que o Movimento Negro é complexo e requer estudos a partir de uma vertente crítica, estabelecendo uma relação com suas inciativas e os contextos políticos, históricos, culturais, de consolidação de espaços de poder e de formação de ideologias que lhes são inerentes. Assim sendo, os estudos recentes explicam que a história da população negra é determinada pelas transformações sociais em curso e demonstram, dessa maneira, as contradições e as ideologias presentes na chamada história oficial ou nas vertentes historiográfica estruturalistas, que tendem a focalizar no apagamento da participação negra na história, ou delegar-lhe papéis coadjuvantes. No entanto, importe considerar as iniciativas do Movimento Negro, desde 1930, com a Frente Negra Brasileira (FNB) e, décadas depois, com o Movimento Negro Unificado (MNU) que lutaram pela igualdade e contra o racismo através de inúmeras estratégias a favor da população negra.
Num sentido amplo o Movimento Negro pode ser compreendido como a luta da população negra na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade, como forma de contribuir para a eliminação do preconceito racial e os malogros decorrentes dele. De acordo com Nilma Lino Gomes (2017) o Movimento Negro permitiu que a história negra fosse preservada, uma vez que no Brasil práticas racistas ainda permeiam nas relações.
Uma coisa é certa: se não fosse a luta do Movimento Negro, nas suas mais diversas formas de expressão e de organização – com todas as tensões, os desafios e os limites –, muito do que o Brasil sabe atualmente sobre a questão racial e africana, não teria sido aprendido. (GOMES, 2017)
De acordo com a citação acima, o Movimento Negro colaborou para que a sociedade enriquecesse no conjunto de sua diversidade e permitiu que as identidades étnico-raciais fossem construídas ao longo dos anos. Para a autora supramencionada, o Movimento Negro em sua trajetória produziu novos conhecimentos e contribuiu para que a ligação entre as relações étnico-raciais e a diáspora africana estejam em evidência.
Na mesma linha de raciocínio, Thomas Skidmore
[2], em 1985, mencionou que “Não há história geral dos movimentos negros e/ou mulatos no Brasil moderno, fora da época abolicionista. Isto não é surpreendente, já que pouca pesquisa se fez a respeito”. De fato, a historiografia brasileira necessita abordar as fases da trajetória do Movimento Negro de forma a refutar tal afirmação, pois é comum associar o fluxo dos movimentos sociais negros somente a partir de 1930 com a Frente Brasileira e em 1970 com o Movimento Negro Unificado, mas muito do que é exposto sobre a luta negra no século XX permeia acontecimentos de todo o período republicano.
Inúmeros autores trataram de identificar e tipificar o brasileiro, tais como Gilberto Freyre (1993) que ao longo de sua obra “Casa-grande e Senzala” tratou de salientar que o brasileiro era pertencente ao cruzamento das culturas dos colonizadores, branco, negros e indígenas. Tem-se também Sergio Buarque de Holanda
[3] (1995) que vê o Brasil sob as influências de Portugal e sem um orgulho brasileiro explícito. De fato, tais intelectuais contribuíram, dentro de seu tempo e com as especificidades dele oriundas, significativamente para que se entendesse as particularidades do Brasil e se pudesse ocorrer uma análise quanto a população negra sob suas perspectivas, mesmo que ainda açambarcadas por uma perspectiva de análise que fugia dos desígnios contemporâneos pelos quais se analisa a trajetória negra no Brasil. Vale ressaltar que tais produções não devem ser desconsideradas no bojo dos estudos de temática negra pelo fato das mesmas açambarcarem visões sobre esses sujeitos.
No entanto, é evidente que a trajetória do Movimento Negro contada através do papel dos mesmos enquanto sujeitos da história contribuiu para que ocorresse uma maior visibilidade em se tratando das questões étnico-raciais focalizadas nesses sujeitos históricos e enquanto ativos, e não apenas reforçando os estereótipos de sujeitos passivos da história. Neste sentido, destaca-se a importância da vertente multiculturalista crítica e do surgimento dos Black Studies nos Estados Unidos a partir da primeira metade do século XX. Esse movimento tinha por objetivo a valorização dos conhecimentos sobre a história dos negros, o estímulo à autoestima dos povos negros e a preparação desses povos para exigir igualdade de direitos. Logo depois, esse movimento se tornou uma disciplina curricular, galgou espaço e foi disseminado pelos periódicos acadêmicos e demais disseminadores da cultura acadêmica, chegando até o Brasil e impulsionando ainda mais os movimentos já atuantes.
Em relação ao reflexo dessas teorias no Brasil, destaca Domingues (2007) que a disseminação das mesmas em território nacional contribuiu para que no Brasil houvessem as primeiras iniciativas dos negros e movimentos de libertação da raça negra. Essas teorias foram imprescindíveis para a formulação da teoria da Negritude, uma teoria em forma de protesto que denunciava e reivindicava mudanças substanciais para a situação da população negra brasileira que ainda se encontrava negligenciada pela sociedade. A negritude foi um ideário que floresceu no Brasil e promulgava uma resposta dos negros brasileiros em ascensão social ao processo de assimilação da ideologia do branqueamento. Assim sendo, a teoria da negritude foi um movimento de resgate da humanidade do negro.
Deste contexto também tomam importância as reinvindicações pela valorização da identidade da população negra nos currículos escolares, perspectiva preludiada por autores como Santomé
[4] (1995), que defendia que as culturas populares devem estar presentes no ambiente escolar como forma de reconhecimento e valorização de suas identidades, e salienta ainda que o sistema educacional deve tratar do racismo como um impedimento a continuidade da cultura negra, uma vez que de forma consciente ou oculta ele está presente no ambiente escolar.
Esta breve exposição de autores nos apontou que, o contexto cultural e político determina a compreensão que se tem de Movimento Negro e, portanto, a concepção de Movimento Negro está relacionada com a produção da vida material humana, em cada período histórico. Desse modo, é possível afirmar que é impossível estudar o Movimento Negro fora de uma totalidade, sem levar em consideração os acontecimentos históricos que o cercam. Assim, ao se afirmar que a luta negra é uma construção social, compreende-se que a mesma se modifica ao longo da história, recebe uma nova significação. O estudo dessa significação atualmente, em relação ao regional, é o objeto de estudo dessa pesquisa.
Partindo desses pressupostos, vale ressaltar que se a participação negra fora de influência na formação da sociedade brasileira como um todo, ela também tivera influência na constituição das regiões e das microrregiões. Neste sentido, seguindo as formulações que tomaram o Brasil quanto à negligência da participação negra enquanto sujeitos da história, o Município de Maringá, situado no Estado do Paraná, não é particularmente conhecido por sua pluralidade racial, como todos os demais núcleos urbanos surgidos em frentes de colonização em meados do século XX. Vale ressaltar, no entanto, que ele foi formado por gente de todos os grupos raciais, mas desde sua fundação deixou claro as divisões sociais, como é apontado por Castelleto.
O fato é que desde seu planejamento, Maringá tendeu a ser uma cidade segregada, sendo clara a tentativa de separar a classes sociais em bairros, dando uma forma centralizada ao alto escalão da sociedade separando-os por dois parques (hoje, Parque do Ingá e Bosque II), com uma via de acesso rápido ao centro, que é uma parte destinada ao comércio. (CASTELLETO, 2014).
Percebe-se que no esforço em distribuir demograficamente a população como forma de delimitar os espaços, o Município de Maringá relegou às classes menos favorecidas localidades também com essa característica. Quando se analisa a questão à luz da perspectiva de raça na construção da história local, o município não evidencia na história oficial a contribuição da população negra para o desenvolvimento, ao mesmo passo que também minimiza a importância de seus habitantes para o crescimento e fortalecimento da Região.
De acordo com os dados do ano de 2010, processados a partir dos Censos feitos pelo IBGE
[5] pelo Observatório das Metrópoles, núcleo de pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá, 70% da população do município é branca ou, ao menos, assim se declara. Já os pardos são cerca de 22%, os amarelos perto de 3,5% e os pretos cerca de 3,3%. Não é preciso lembrar o quanto essas autodeclarações são socialmente determinadas. Tampouco é preciso mencionar que os valores de branqueamento são dominantes em sociedades ocidentais fortemente marcadas por práticas de discriminação racial.
Partimos do pressuposto que é impossível falar em Movimento Negro no Paraná sem compreender a história das instituições voltadas para a valorização da cultura afro-brasileira, em Maringá, como por exemplo a Associação União e Consciência Negra de Maringá (AUCNM) criada em meados de 1987, Centro Cultural Jhamayka e o Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques (IMNEAM) (ver anexo 01). Entende-se que o pioneirismo negro no município deve ser retratado como forma de valorização e reconhecimento pelos serviços prestados à sociedade como um todo.
Neste sentido, espera-se, com esse trabalho, regatar as memórias da população negra de Maringá, para que estes pioneiros possam ter sua história retratada como uma forma de valorização de sua contribuição para o desenvolvimento do Município de Maringá e superação da invisibilidade e do silenciamento da história e da cultura negra. A atuação da Associação União e Consciência Negra de Maringá, do Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques e do Centro Cultural Jhamayka devem ser reconhecidas uma vez que há mais de 30 anos tornam os espaços públicos menos dolorosos para a população negra. Com esse trabalho é esperado que a história negra de fato tenha um papel de destaque e corrobore para que os habitantes de Maringá (re) conheçam os feitos e benefícios que a população negra proporcionou aos cidadãos maringaenses
[1] DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos.
Revista Tempo, v. 12, n. 23, p. 100-122, 2007.
[2] Autor do livro “O Brasil visto de fora” (1994)
[3] Autor do livro “Raizes do Brasil” (1995)
[4] Autor do livro “Alienígenas na Sala de Aula – Uma introdução aos estudos culturais em educação” (1995)
[5] Censo demográfico, IBGE, 2010. Observatório das Metrópoles, núcleo de pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá